Sou cineasta. Também. Já sonhei com muitas coisas. Quis fazer parte de um set de gravação. Fiz. Quis fazer parte da equipe de uma grande produção. Fiz. Quis fazer parte da direção de uma grande obra do cinema brasileiro. Fiz. Quis ter meu filme autoral presente em festivais. Tive. Sonhei em descobrir como seria possível “recriar” a chegada do homem à lua para que o mundo inteiro pudesse assistir. Descobri. O que eu não conseguia descobrir de modo algum era como produzir, pós-produzir e lançar uma obra audiovisual sem sair da minha cidade, no interior de São Paulo. Isso sim foi um sonho, que resistiu e se concretizou!
Começo por dizer que a LEI PAULO GUSTAVO deveria ser incorporada à política de Estado e não cair no esquecimento como uma lei emergencial. PAULO GUSTAVO não merece. Isso não apenas pelo seu sucesso, mas pelo seu caráter positivamente transgressor – e não à toa a Lei carrega seu nome. Artistas e produtores não devem seguir passando o que passam há tempos: ter suas melhores experiências e boas práticas sendo esquecidas ou banidas de um dia para o outro. Os números indicam sucesso. Como anunciado pelo Governo Federal: “Com a Lei Paulo Gustavo o Brasil atingiu o maior valor investido diretamente em cultura na história. Dados do MINC mostram que Estados, Distrito Federal e Municípios executaram 3,9 bilhões da Lei”. Mas não estou aqui para falar apenas de números.
Registramos nossos fracassos históricos de diversos modos. E o que deu certo? E aquilo que causou uma fricção nas estruturas e desafiou os tradicionais meios de produção? E o que a LEI PAULO GUSTAVO, brilhantemente, transgrediu- e não deve ser esquecido?
DESCENTRALIZAÇÃO DE RECURSOS
Pela primeira vez, recursos federais foram distribuídos diretamente a estados, municípios e ao Distrito Federal, permitindo que cada localidade elaborasse editais públicos com base em consultas e reuniões setoriais, ouvindo a sociedade civil. Após a seleção dos projetos, os repasses eram feitos diretamente aos proponentes vencedores.
O diferencial dessa metodologia foi notável: ao destinar parte dos recursos exclusivamente ao audiovisual, a LPG permitiu que produtores fora do eixo Rio-São Paulo e das capitais realizassem e lançassem suas obras de maneira independente e autônoma. Um feito raro no Brasil.
Historicamente, as prefeituras alegam falta de orçamento para investir em editais de produção, distribuição e lançamento de filmes. Esse tipo de fomento geralmente fica sob responsabilidade dos estados e da União, por meio de incentivos fiscais e investimentos diretos. No entanto, o acesso a esses recursos é burocrático e desigual, favorecendo produtores que já estão próximos dos grandes centros de decisão.
A LPG mudou esse cenário, direcionando recursos federais diretamente para o audiovisual em cidades de todos os portes. O impacto econômico foi imediato: além de gerar empregos locais, a medida viabilizou o registro audiovisual de novas memórias e narrativas, deslocando o protagonismo das grandes metrópoles para o interior do país.
A autonomia narrativa é um dos maiores legados dessa política. Como bem observou Ailton Krenak,
“Nos contaram a história de um Brasil que não é o nosso. Precisamos contar as nossas histórias, não como sobreviventes, mas como protagonistas de um outro mundo possível.”
(Ideias para adiar o fim do mundo, 2019)
Contar essas histórias exige tempo, pesquisa e recursos. E são tantas as histórias que os mecanismos de fomento ainda não são suficientes para dar conta de todas.
A indústria do cinema é mais do que entretenimento: trata-se de uma indústria da soberania. Filmes moldam identidades, constroem imaginários e influenciam a memória coletiva. Os países precisam controlar suas próprias produções artísticas e narrativas, evitando que suas histórias sejam contadas exclusivamente por Hollywood ou grandes estúdios estrangeiros. A Lei Paulo Gustavo foi além: possibilitou não apenas a valorização das narrativas nacionais, mas também das histórias locais de pequenas e médias cidades brasileiras.
O cineasta Glauber Rocha já dizia:
“O cinema não é apenas entretenimento. Ele é um campo de batalha onde se disputa a memória e o futuro de uma nação.”
(Estética da Fome, 1965)
O RETORNO DE TALENTOS ÀS CIDADES DE ORIGEM
Outro efeito notável da LPG foi o retorno de talentos às suas cidades natais. Profissionais que haviam deixado suas cidades para estudar e trabalhar no cinema puderam voltar e participar de produções locais. Além de concretizar seus próprios sonhos, inspiraram novos talentos e compartilharam conhecimento com suas comunidades.
Em muitos casos, foi a primeira vez que um set de gravação foi montado em determinadas localidades. Profissionais experientes do audiovisual trouxeram técnicas, equipamentos e metodologias que antes estavam restritos aos grandes centros. Com isso, fotógrafos, editores, atores e roteiristas locais emergiram e tiveram uma oportunidade real de ingressar na indústria cinematográfica.
Cidades que desejam reter talentos e estimular a criatividade precisam oferecer um ambiente propício para artistas, inovadores e empreendedores. O capital cultural e social está diretamente ligado à migração e à permanência de talentos.
ENGAJAMENTO DA COMUNIDADE LOCAL
O impacto da Lei Paulo Gustavo não se restringiu aos profissionais do audiovisual. O envolvimento da comunidade foi imediato e transformador.
Na nossa cidade, um teste de elenco e figuração foi aberto ao público com ampla divulgação. Em poucas horas, mais de 300 pessoas se inscreveram, forçando o encerramento antecipado das inscrições. Muitos queriam apenas ver de perto como funciona um set de gravação.
Estamos constantemente cercados por conteúdos audiovisuais, a maioria produzida por plataformas estrangeiras. Quando a população se vê representada, o impacto é profundo. O entusiasmo não estava restrito apenas ao elenco: fornecedores locais, que forneceram alimentação, materiais e serviços para a produção, participaram da estreia do filme com orgulho. A experiência coletiva da criação artística fortalece a identidade local e rompe com o papel passivo de meros consumidores.
O teórico da comunicação Henry Jenkins define esse fenômeno como cultura participativa:
“A cultura participativa desafia a passividade do consumo e coloca os cidadãos como coautores de sua realidade midiática.”
(Convergence Culture, 2006)
Vencer um Oscar deve ser um feito memorável para qualquer artista. Mas reunir amigos, familiares, colegas, comerciantes, integrantes do poder público e a comunidade em uma sessão de estreia de um filme local é algo digno de nota.
Em uma exibição do filme em uma escola, os alunos insistentemente perguntavam quando eu gravaria a continuação. Só pude responder que não sei. Paulo Gustavo, seguimos rogando pela sua não descontinuidade.
Escrito por FERNANDA G MACHADO, 04/02/2025, de Araçatuba-SP.
Fernanda é jornalista, cineasta, escritora e produtora, com experiência em grandes produções como “O Tempo e o Vento“. Dirigiu o documentário “Arapaima: Redes Produtivas“, reconhecido por seu impacto social. Foi responsável pelo projeto “Jovem Escritor“, que revelou talentos nas escolas públicas. Em 2024, produziu o curta “Fogo no Canavial“. É especialista em publicidade cultural e comunicação estratégica, com ampla experiência em gestão de projetos.
Por: Fernanda Gaiotto, com Conteúdo Estratégico.